< Análises feministas

Trabalho, solidariedade e estratégias das mulheres negras

“Ao evidenciar a ênfase direcionada à dimensão racial (quando se trata da percepção e do entendimento da situação das mulheres no continente) tentarei mostrar que, no interior do movimento, as negras e as indígenas são as testemunhas vivas dessa exclusão. Por outro lado, baseada nas minhas experiências de mulher negra, tratarei de evidenciar as iniciativas de aproximação, de solidariedade e respeito pelas diferenças por parte de companheiras brancas efetivamente comprometidas com a causa feminina. A essa mulheres- exceção eu as chamo de irmãs.”

Lélia Gonzalez, Por um feminismo Afro-latino-americano, 1988

“Em geral, a unidade na luta das mulheres em nossas sociedades não depende apenas da nossa capacidade de superar as desigualdades geradas pela histórica hegemonia masculina, mas exige, também, a superação de ideologias complementares desse sistema de opressão, como é o caso do racismo. O racismo estabelece a inferioridade social dos segmentos negros da população em geral e das mulheres negras em particular, operando ademais como fator de divisão na luta das mulheres pelos privilégios que se instituem para as mulheres brancas. Nessa perspectiva, a luta das mulheres negras contra a opressão de gênero e de raça vem desenhando novos contornos para a ação política feminista e anti-racista, enriquecendo tanto a discussão da questão racial, como a questão de gênero na sociedade brasileira.”

Sueli Carneiro, Enegrecer o Feminismo, 2003

Bianca Santana¹

Há diferenças, e também desigualdades, entre as mulheres. A mulher universal é uma falácia, como já explicitaram as feministas negras desde, pelo menos, a década de 1970, e como asseguram os dados da pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. Talvez não fossem necessárias tais afirmações em 2020, quando o feminismo antirracista é quase um pleonasmo. Mas é sempre importante lembrar que considerar raça e classe como estruturantes das desigualdades entre as mulheres – e a importância de pautar um feminismo popular antirracista –  foi uma conquista do movimento das mulheres negras.

Por mais que a história das mulheres negras não comece no tráfico transatlântico e na escravização, é inegável que a violência brutal vivenciada entre os séculos XVI e XIX marcaram nossa trajetória ancestral, familiar e individual. Além da resistência nos quilombos, na escrita, na religiosidade, nas sabotagens, fomos obrigadas a servir. E mesmo depois da abolição inacabada, as mulheres negras continuaram servindo como empregadas domésticas. 

Além do trabalho doméstico e de cuidados não remunerados em suas próprias casas, as trabalhadoras domésticas são também as responsáveis por realizar o trabalho doméstico mal remunerado em casas de classes média e alta.  Em 2008, a cada 100 mulheres negras trabalhadoras no Brasil, 22 eram empregadas domésticas; dez anos antes, eram 48. E em 2013, a luta das trabalhadoras domésticas organizadas garantiu, ainda que no papel, direitos trabalhistas à categoria. Apenas em 2013 e apenas no papel. Durante a pandemia de COVID-19, o trabalho doméstico remunerado foi considerado serviço essencial, afinal, mesmo no isolamento social as classes médias e as elites não poderiam cuidar das próprias crianças ou limpar a própria sujeira. Uma alegoria do quanto o colonialismo e o sistema escravagista ainda vicejam entre nós. Pausa aqui em solidariedade a Mirtes de Souza, mãe do garoto Miguel, vítima fatal da negligência de Sarí Côrte Real e das relações colonialistas do Brasil de 2020.

Por décadas, para fazer luta política e ocupar postos no mercado de trabalho, as feministas brancas deixaram os cuidados domésticos de suas casas, das crianças e dos idosos com as empregadas domésticas negras, sem nem ao menos refletirem sobre isso. As diferenças entre mulheres não tinham espaço na agenda feminista hegemônica. As reivindicações de mulheres negras e indígenas, pautadas por desigualdades, eram minimizadas e o conflito racial parecia não ter relevância para o feminismo. 

Em 1985,  Sueli Carneiro e Thereza Santos publicaram o livro Mulher Negra, em que desagregaram, pela primeira vez, os dados brasileiro de gênero, raça e classe.  O estudo permitiu diagnosticar o abismo das desigualdades de escolarização, renda e ocupação no mercado de trabalho entre mulheres brancas e negras, aleḿ de apontar caminhos para superar as desigualdades intragênero. A publicação foi importante também para validar a percepção acertada de feministas negras que, a partir daquele momento, serviram de base para estruturar as primeiras políticas públicas específicas para mulheres negras no Brasil. E também para fortalecer o grupo político que se constituía. 

Se os Encontros Nacionais Feministas dos anos 1980 não davam à pauta racial a atenção merecida, o sujeito político mulher negra organizou, em 1988, o Primeiro Encontro de Mulheres Negras. A partir daí, encontros correlatos foram criados no continente, constituindo, em 1992, a mulher negra afro-latino-americana também como sujeito político internacional e diaspórico. O protagonismo da organização de mulheres negras, tanto do Brasil como da América Latina, nas conferências da ONU da década de 1990 e, consequentemente, nas discussões das políticas públicas brasileiras foi importante para que o feminismo fosse enegrecendo. 

Em 2004, na I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, em Brasília, mulheres negras e indígenas instauraram uma aliança de parentesco, baseada na semelhança dos processos históricos que submeteram igualmente povos indígenas, africanos e seus descendentes, que dizia: ‘‘Firmar o nosso parentesco através de uma aliança política na busca conjunta de superação das desigualdades econômicas, políticas, sociais e culturais e de poder; firmar uma aliança estratégica para a conquista da igualdade de oportunidades para mulheres índias e negras na sociedade brasileira; firmar uma aliança estratégica que dê visibilidade a índias e negras como sujeitos de direitos. Doravante índias e negras consideram-se parentes”.

As diversas organizações feministas e do movimento de mulheres apoiaram o manifesto e passaram a sinalizar disposição de recusar os privilégios raciais disponíveis a que mulheres brancas para a construção de uma efetiva igualdade entre todas as mulheres. Ao final da Conferência, afirmaram que raça e etnia eram variáveis inegociáveis nas políticas públicas para a promoção de igualdade de gênero, o que foi importante para que no II Plano Nacional de Política para Mulheres, resultado da Conferência de 2007, o combate ao racismo, ao sexismo e à lesbofobia estivessem inscritos na luta feminista, necessariamente antirracista. 

Neste 2020, mulheres brancas que sempre tiveram empregadas domésticas em suas casas, mas respeitaram o isolamento social das trabalhadoras, puderam experimentar por mais tempo a sobrecarga do trabalho remunerado com o trabalho doméstico e de cuidados, e também a necessidade de se dedicar ao cuidado de outras pessoas, além do próprio núcleo familiar. Para muitas mulheres negras, além da sobrecarga histórica, também foi necessário ampliar as horas dedicadas à solidariedade e aos vínculos comunitários com outras famílias, especialmente outras mulheres negras que precisaram seguir dedicadas ao trabalho fora de casa, para apoiar os cuidados das crianças que ficaram sem aulas e sem alimentação escolar durante a pandemia. Tais vínculos de solidariedade sempre permitiram a sobrevivência de mulheres e famílias negras, em contextos socioeconômicos extremamente desfavoráveis.

E se, nesta quarentena, as redes sociais estão inundadas de fotos em branco e preto que retratam a beleza das mulheres com seus cabelos crespos ou lisos, com seus narizes em formatos variados, com corpos magros e gordos,  também cabe reconhecer que a discussão do padrão estético hegemônico branco foi enfrentada pelo movimento de mulheres negras por décadas. Com nossos diferentes tons de pele, tecidos africanos e turbantes, além das redes, ocupamos também as universidades e realizamos pesquisas acadêmicas mostrando, mais e mais vezes, a dimensão racial da pobreza no Brasil, retomando nossa ancestralidade, riqueza essa que não foi expropriada pelo colonialismo. Evidentemente, seguimos também nas ruas, organizadas, para exigir políticas específicas para mulheres negras, contra o racismo, o machismo, pelo bem viver, até que todas sejamos livres.

¹ Bianca Santana é jornalista, escritora e ativista integrante da UNEAfro e Coalizão Negra por Direitos.