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Para líder da economia solidária, redes auto-organizadas de mulheres são fundamentais para enfrentar a pandemia

Uma das coordenadoras da Rede Xique Xique, do Rio Grande do Norte, Neneide Lima reafirma a importância desses grupos para a sobrevivência da agricultura familiar em tempos de covid-19 e alerta para o retrocesso nas conquistas das mulheres, que precisaram voltar a ficar em casa

Por Aline Gatto Boueri*

Qual foi o impacto da pandemia na rotina de trabalho das mulheres do campo?
Neneide – Para o rural, para quem trabalha individual, no seu quintal, na produção familiar, que não seja em grupo coletivo, não teve uma ação muito grande porque a gente já faz essa dupla, tripla jornada de trabalho nos quintais agroecológicos. Porque enquanto bota o almoço no fogo, você cuida da galinha, cuida da criança. A diferença, que aumentou muito, é a história das crianças que não estão indo para a escola. No rural também isso veio à tona, de você fazer tudo isso e ainda ter que cuidar da criança. 

E para as mulheres da economia solidária, o que mudou?
Neneide – Como a gente trabalha com produto essencial, para alimentar as pessoas, a gente não parou, mas ao mesmo tempo, a gente acumulou. Porque você não parou, mas também teve que fazer todo o processo das entregas, de pedido, de mobilização de produto para distribuir as cestas para o consumo final. E aí você traz tudo isso para dentro de casa. E aparecem as tarefas escolares com as crianças, que são todas online, e você não tem tempo para fazer ou você faz e o trabalho acumula. Então você vem para a cooperativa só no momento de distribuição, de agendamento e de entrega. Isso também trouxe uma carga muito forte para nós, mulheres. As cooperativas da agricultura familiar têm que atender o mercado do mesmo jeito, mas ao mesmo tempo acumulou todo esse trabalho. E fora o processo de violência, de muitas estarem com o marido dentro de casa. Muitas vezes alguns bebem e não é mais só final de semana, são todos os dias, por ficar em casa. Piorou muito isso.


Um retrocesso?
Neneide –
Com certeza a gente teve nas nossas vidas um retrocesso, porque você ocupa o espaço da associação ou da cooperativa para trabalhar e aí você é obrigada a voltar a ficar dentro de casa. E quando você é obrigada a ficar dentro da casa, você também volta a fazer tudo o que a gente [deixou de fazer na] conquista da liberdade, que é a história do trabalho doméstico. Você tem que fazer um bordado e botar uma comida no fogo, tem que cuidar da criança, fazer mil coisas ao mesmo tempo, que é o que nós, mulheres, acabamos fazendo. Quando a gente volta a trabalhar dentro de casa, é uma tensão muito grande.

A pandemia trouxe de volta tudo aquilo que no decorrer do processo a gente veio conquistando, de poder organizar tudo para poder sair da casa, para ir trabalhar num canto coletivo.

Agora temos que trazer esse trabalho todo para dentro de casa, e isso faz com que você tenha dupla ou tripla jornada, isso ficou mais visível. Além de tudo isso que provoca você estar dentro de casa, porque aí você aumenta o trabalho com os filhos, com o marido, com o pai, com a mãe, com a sogra que mora dentro da casa. 

Com esse acúmulo de trabalhos, como as mulheres reorganizaram suas estratégias durante a pandemia para manter seu sustento?
Neneide – Nós da agricultura familiar, da Rede Xique Xique, a gente não parou. A gente começou essa história de delivery, tem os pedidos, e a gente faz as entregas. A gente se reinventa a partir da dificuldade. Isso de delivery, de deixar em domicílio e as pessoas receberem em casa, as vendas pela internet, eu acho que cresceu esse mercado, de economia solidária, com artesanato, dos produtos de confecção, mas também de alimento. Então, passou o processo de pandemia, acho que é uma coisa que a gente deve continuar. São coisas que a gente está conseguindo executar. Aqui no Rio Grande do Norte, por a gente ter elegido uma governadora popular, isso gerou acesso a políticas públicas. A gente também vendeu para o estado. Com articulação entre cooperativas, a secretaria de agricultura familiar e a de educação, a gente forneceu kit para merenda escolar, para distribuir para os alunos.

Além disso, nós da Rede Xique Xique executamos um projeto de distribuição de cestas básicas da agricultura familiar. A  gente conseguiu tanto distribuir renda entre as mulheres da agricultura familiar como doar alimentos para pessoas que estavam passando pelo processo de maior dificuldade.

Agricultura familiar organizada pela Rede Xique Xique | Foto: Facebook

E como as redes de solidariedade se reorganizaram para acompanhar as mulheres nos cuidados da saúde física e mental, nesse contexto de acúmulo de trabalhos?
Neneide – Existe um cuidado coletivo. Particularmente no grupo de que eu faço parte, ainda não teve casos no assentamento. Onde não tem caso, as mulheres continuam se encontrando para fazer colheita de mel; duas, três ainda se encontram com máscara, com álcool. Ainda está tendo esse contato de coletivo, não em grande multidão, para discutir formação, capacitação.

Na agricultura familiar, nas unidades, as pessoas não pararam, e o que a gente está fazendo é reunião, videoconferência direto, como vias de encontro.Nós, da Rede Xique Xique, também estamos fazendo reunião virtual; o laço não é de toque, de abraço, mas para que as pessoas se sintam parte do coletivo. Antes de começar a gente dialoga sobre o que está passando com a vida da outra, na comunidade. Esse momento é muito importante para a gente permanecer vivo, essa história da auto-organização. De isolamento, mas de recebimento, de sentir pelo menos na reunião virtual que a gente ainda está em grupo, que ainda é um processo coletivo, e a gente ainda pode discutir junto. 

Uma coisa que a pandemia trouxe foi que a gente aprendeu que pode abrir uma sala e as pessoas podem participar virtualmente. Isso faz com que cada vez mais as decisões, as participações se multipliquem, porque agora além de reuniões presenciais, a gente pode ter pessoas online.

Eu acho que é aprendizagem essa histórias das reuniões – não exageradamente como a gente está tendo agora [risos] – mas acho que é uma aprendizagem para que seja cada vez mais democrático. 

Exposição de alimentos organizada pela Rede Xique Xique Foto: Facebook

Você mencionou a questão da violência. Quais são as estratégias das mulheres para prestar solidariedade às que estão passando por uma situação assim nesse momento? 
Neneide – No assentamento, na comunidade, não é essa história individual que a gente tem no urbano, de cada um na sua casa. Aqui não é o muro que separa as pessoas da visão, a gente tem cerca de vara, de arame, vê gente toda hora, é uma comunidade, uma vem buscar as frutas na casa da outra, ainda tem contato. Não é um isolamento total. Então, esse processo de auto-organização, não de usar um apito, mas de dar um grito, ainda existe, porque todo mundo conhece, todo mundo sabe o que está acontecendo naquela comunidade. A gente ainda tem essa relação de troca de alimento, de conversar com as outras.

O mecanismo que a gente usava lá atrás a gente ainda usa hoje no processo de pandemia. Esse processo a gente organizou desde antes, para que o opressor seja quem tenha que se envergonhar, não quem sofre a violência.

Então, é colocar na comunidade para as outras saberem, para ele se envergonhar, não ela. Aqui mesmo na Rede Xique Xique, se acontecer um processo desses com qualquer uma das mulheres, a gente sabe, porque existe uma rede, que já foi construída, de vigilância entre nós mesmas.

Você acha que já estar organizadas previamente fez muita diferença na vida das mulheres durante a pandemia? 
Neneide – Com certeza, se a gente não tivesse um grupo, uma Rede Xique Xique, para fazer esse processo de comercialização, com esse isolamento a gente não teria sobrevivido a tudo isso. Para a gente que trabalha na base agroecológica, a diversidade é muito clara. Mas faltaria dinheiro para comprar o que a gente não produz, como café, açúcar, material de limpeza. Se a gente não tivesse a auto-organização que a gente tem, pensando nas mulheres, para fazer um volume de comercialização, a gente não estaria vendendo nada. Isoladamente ninguém vai a canto nenhum, então, a auto-organização é muito importante para essa sobrevivência.

61% das mulheres que estão na economia solidária são negras, como mostra a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”. Como é o debate sobre raça e gênero nos movimentos da economia solidária e qual foi o impacto da pandemia nesse debate? Isso foi mais conversado nesse momento?
Neneide – Dentro da Rede Xique Xique a gente não discute muito a história da raça, mas ao mesmo tempo a gente sente isso muito presente. Agora com a pandemia, teve muito debate sobre essa história da raça. E uma das coisas que a gente percebe é que quase todas essas mulheres negras, elas tiveram que sair do lugar onde estavam, que é de trabalhadora doméstica. Quase todo mundo mandou suas secretárias do lar para casa, ficaram só com a família. Então, foi difícil principalmente para as mulheres urbanas, que são empregadas domésticas e deixaram de fazer faxina, deixaram de estar em tempo integral.

Você debatem a participação dos homens no cuidado das crianças?
Neneide – Por incrível que pareça aqui na rede está sendo muito discutido, a gente tem uma pessoa aqui que ele fica um tempo com a menina e a mulher fica outro tempo. Na reunião a gente até discutiu, a gente tem provocado isso, que a gente tem que entender como as crianças são importantes nas vidas das pessoas e que outras pessoas que não têm filhos pequenos têm que entender como as essas pessoas precisam dividir essas tarefas. Então discutir isso com uma mulher que tem uma filha e que tem que ficar com ela, que não tem um companheiro, e discutir isso com o companheiro que tem uma filha e que tem uma mulher que trabalha, que eles têm que dividir esse trabalho também. Isso faz parte da pauta da gente, porque por mais que a mulher não trabalhe na instituição [e o homem sim], ela tem outro trabalho e ele tem que dividir as tarefas com ela também. Então isso a gente discute bastante aqui.

*Aline Gato Boueri é colaboradora da Gênero e Número