Trabalhadoras domésticas denunciam patrões que suspenderam contrato de trabalho, mas negam direito à quarentena
Por Giulliana Bianconi*
Na pesquisa, “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, a maior parte das mulheres que declaram se sentir em risco quanto à sustentação da casa são mulheres negras; entre as mulheres trabalhadoras domésticas, que também são maioria negra, como esse risco tem sido relatado no Sindicato das Domésticas de Pernambuco e na Fenatrad?
Luiza Batista – A gente tem recebido cada tipo de denúncia no Sindicato… Primeiro, tem uma parte das trabalhadoras domésticas que entram em contato já demitidas, e agora vão correr atrás dos direitos, mas sem salário, e essa situação é mais parecida ao que já conhecemos. Mas há um grupo das que não foram demitidas e procuram o sindicato porque estão vendo seus direitos violados, se sentem muito sobrecarregadas com tarefas que agora são obrigadas a acumular, com carga horária maior porque muitas foram praticamente obrigadas a permanecer no local de trabalho, sem ir para casa. Entende o que está acontecendo? Em vez de liberarem as trabalhadoras, muitos empregadores exigiram que elas permanecessem no local de trabalho, sem ver a família, inclusive. É importante dizer que muitas dessas mulheres são chefes de família, e apesar de saberem que os empregadores estão abusando, elas se sentem pressionadas a cumprir essa exigência porque dependem dessa renda para alimentar os filhos e para manter a casa.
Esse é o tipo de violação mais grave que mais tem sido denunciado com frequência?
Luiza Batista – Tem uma violação mais grave, que inclui essa: é praticamente um cárcere privado, e que inclusive agora estamos denunciando ao Ministério Público, depois de três trabalhadoras aqui de Pernambuco terem decidido enfrentar os patrões, mesmo sabendo que isso significa ficarem sem o emprego em que estão. Na pandemia, o governo federal criou a Medida Provisória 936, para que empregadores possam suspender contrato de trabalho, e assim o governo garante uma remuneração, que é como um seguro-desemprego. O que começou a acontecer? Mesmo suspendendo contratos, patrões e patroas exigiam que elas fossem. É um absurdo, mas está acontecendo. Temos aí a violação do direito de a trabalhadora ficar em casa e preservar a sua saúde e a da sua família, mas também pessoas burlando as regras da CLT e da Medida Provisória, tirando vantagem da situação em plena pandemia, pois mantêm uma funcionária sem pagar salário, FGTS nem INSS. Então reunimos essas mulheres que estavam muito indignadas com a situação, que não queriam ter que ir ao trabalho nesse período, e a denúncia está feita, mas sabemos de outras que estiveram e estão na mesma situação e não vão denunciar. A gente fica de mãos atadas porque realmente não temos como interferir nessa decisão, quando sabemos que é uma decisão que coloca em risco a renda da família, daquela mulher.
O que aconteceu com a Mirtes e com o filho choca, mas se você ler os comentários na internet, são horríveis. ‘Por que levou o filho?’ ‘Casa de patroa não é lugar de criar filho’. Tinha um comentário que dizia ‘Estamos enfrentando inversão de valores agora que nós, patroas, temos que tomar conta de filhos da empregada’.
E que tipo de trabalho vocês têm feito para chegar às mulheres trabalhadoras domésticas nesse período, reforçando a necessidade de elas estarem atentas aos abusos e buscarem informação ?
Luiza Batista – A gente tem feito bastante campanha em redes sociais, também temos o aplicativo Laudelina, que é iniciativa da Fenatrad e da Themis, e mantivemos o funcionamento do sindicato três vezes na semana. Recebemos, por turno, cerca de 10 ligações, percebemos que foi crescente o número de mulheres demitidas nesse período, mas ainda não temos dados porque estamos, como sempre, trabalhando bastante para dar suporte às mulheres, estamos atentas às mulheres que ficaram desempregadas e estão sem renda, estamos nos mobilizando para arrecadar cestas básicas e distribuir, como fizemos nesta última semana, distribuímos 41 cestas. Também fizemos, lá no início da quarentena, campanha voltada aos empregadores, com a chamada “Cuida de quem te cuida, deixa a trabalhadora em casa com o salário”. Teve patrão que acatou? Teve sim, mas sem dúvida uma minoria. Tanto que temos o caso da Mirtes [Mirtes Renata], que perdeu o seu filho enquanto estava passeando com o cachorro da patroa, o que nem é reconhecido pela Fenatrad com uma obrigação da trabalhadora doméstica. Ela estava trabalhando na pandemia, e teve que levar o filho. A sociedade nos mostra ainda o quanto não valoriza a trabalhadora doméstica, mesmo que tenha aquela história de “é como se fosse da família” [Miguel, 5 anos, caiu do alto de um prédio de luxo no Recife em junho, quando a empregadora da sua mãe, Sarí Corte Real, o deixou entrar no elevador sozinho, enquanto a trabalhadora passeava com o cachorro].
Você acredita que a morte de Miguel e o desdobramentos desse caso, tão representativo dessa relação abusiva de empregadora/empregada doméstica, podem trazer alguma mudança, a partir da visibilidade e do debate decorrentes da tragédia?
Luiza Batista – São 84 anos desde que as trabalhadoras domésticas começaram a se organizar, e nunca tivemos nem 40% da classe registrada, com seus direitos. A Fenatrad, os sindicatos vêm trabalhando muito pelas conquistas dos direitos, avançamos, mas a luta da classe trabalhadora, e falo principalmente do trabalho doméstico, é uma luta que não pode ser relaxada. Isso que aconteceu com a Mirtes e com o filho choca, mas se você ler os comentários na internet, são horríveis. ‘Por que levou o filho?’ ‘Casa de patroa não é lugar de criar filho’. Tinha um comentário que dizia ‘Estamos enfrentando inversão de valores agora que nós, patroas, temos que tomar conta de filhos da empregada’. Então só temos a opção de seguir defendendo o que temos defendido por décadas, e esperar que a mídia acompanhe, e que isso seja mesmo um caso que não seja esquecido. Mas a Sarí Corte Real, ex-patroa de Mirtes, empregava a Mirtes e a mãe dela, que na verdade eram pagas pela prefeitura da cidade onde o marido dela é o prefeito, e mesmo tendo essa relação tão próxima com a família, como disse em entrevistas, não teve paciência para olhar a criança. A Mirtes hoje conta com quatro advogados, movimento negro participando. É uma articulação mesmo de forças, e a gente, como sindicato, ofereceu apoio, mas ela está muito assistida. Não sei se isso muda a situação, mas é um caso emblemático por ser impossível de ser aceito.
Mirtes Renata é uma das trabalhadoras domésticas que não tiveram direito ao isolamento social, mesmo quando o lockdown foi decretado no Recife. E agora, como está o assunto quarentena e isolamento social entre as trabalhadoras domésticas?
Luiza Batista – Aqui em Recife, o trabalho doméstico não foi considerado trabalho essencial, mas isso não teve nenhum impacto, não vimos tanta diferença. No subúrbio e nas comunidades da periferia nunca existiu o isolamento social rígido não. Eu olhava o comércio e as lojas estavam com a porta meio aberta, você chegava perto e alguém te abordava. O mesmo valeu para o trabalho doméstico. Foi o que vimos. Foi 8 ou 80. Ou a trabalhadora foi demitida ou a trabalhadora foi obrigada a ficar no local de trabalho por tempo indeterminado. Foi bem raro, incomum a mulher ficar em casa sendo remunerada. Tem gente que está em casa e o empregador está pagando? Tem sim. Mas é minoria mesmo.
*Giulliana Bianconi é jornalista e diretora da Gênero e Número