Cuidado e sustentabilidade da vida: mulheres que não podem parar
Tica Moreno¹
O reconhecimento da vulnerabilidade individual e coletiva exposta pela covid-19 colocou as preocupações com o cuidado em um lugar talvez inédito em nossa sociedade. São muitas as atividades, relações e trabalhos que garantem os cuidados.
A pesquisa Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia contribui para compor o quadro dos trabalhos que tornam possível a sustentabilidade da vida, destacando aspectos e percepções do cotidiano de mulheres que os realizam em suas casas, sem remuneração. Esses dados, no entanto, devem ser lidos considerando que a infraestrutura de cuidados vai além dos domicílios.
Quase metade das entrevistadas (49%) disseram ser responsáveis pelo cuidado de alguém (especialmente crianças e idosos). Entre elas, as mulheres negras indicaram ter menos apoio externo. Na pesquisa “Sem parar…“, 12% das entrevistadas (52,4% brancas) indicaram contratar alguém para esse trabalho. No Brasil, a maioria das trabalhadoras domésticas são negras, e suas condições de trabalho, documentadas antes e durante a pandemia, são marcadas pela informalidade. Além dos domicílios – com trabalho (mal) remunerado ou gratuito – a infraestrutura do cuidado se estende para instituições públicas e privadas. Nas creches e escolas, especialmente nos primeiros anos da educação básica, as mulheres são a maioria das professoras. E nos cuidados em saúde, elas também são a maioria das profissionais de enfermagem, uma das categorias essenciais e muito afetadas por mortes decorrentes da covid-19. As redes de cuidado na vizinhança figuram entre as estratégias de mulheres nas periferias urbanas, sendo um apoio importante para mulheres negras que são a maioria entre as mães solos e um apoio fundamental para as mulheres que trabalham em empregos com horários incompatíveis com equipamentos públicos. A divisão social, sexual e racial do trabalho organiza não apenas a distribuição desigual do cuidado nas casas, entre homens e mulheres, entre as mulheres, e no conjunto da sociedade.
A interrupção do funcionamento presencial de creches e escolas colocou em risco a segurança alimentar e afetou sobremaneira a rotina das casas onde vivem crianças pequenas. A intensificação das tarefas relacionadas diretamente com o cuidado (como o monitoramento, o auxílio em atividades do cotidiano como alimentação e higiene, os tempos de brincar e entreter) foi percebida pela maioria das entrevistadas responsáveis por crianças pequenas. A demanda concreta das pessoas dependentes de cuidado não pode ser satisfeita a distância: o telecuidado não é possível, nem desejável.
A pesquisa confere uma magnitude a um aspecto que é percebido e vivenciado pelas mulheres no cotidiano: o cuidado direto também demanda e intensifica as atividades relacionadas com os chamados “afazeres domésticos”, nos termos da PNAD. Entre as mulheres responsáveis pelo cuidado de crianças e idosos, a percepção sobre a intensificação das tarefas como cozinhar, lavar louça e a limpeza da casa é 10% superior à média do conjunto de entrevistadas. Compreender a indissociabilidade do trabalho doméstico e do cuidado é condição para romper as dinâmicas de separação e hierarquização dos trabalhos e das pessoas que os realizam.
Essa compreensão ilumina a dimensão da interdependência dos seres humanos: os homens adultos e considerados autônomos também são beneficiários do trabalho doméstico e de cuidado (realizado todos os dias por suas irmãs, amigas, companheiras, tias, sogras…), que garante as condições para que eles possam se dedicar ao seu emprego, a projetos ou mesmo ao ócio. Ao mesmo tempo, a contratação de trabalhadoras domésticas diaristas para a “limpeza pesada” permite que mulheres (e também homens) com renda média tenham mais tempo para si, e mesmo para o cuidado. As relações sociais de gênero, raça e classe estão totalmente imbricadas na organização do trabalho doméstico e de cuidado, e portanto, da sociedade e da economia.
A sobreposição dos tempos, preocupações e demandas é muito sentida entre as mulheres durante o período da pesquisa: 65,4% indicaram que o trabalho doméstico e de cuidado dificulta muito a realização de seu trabalho remunerado, chegando a inviabilizá-lo para 2,6% das mulheres negras.
A sobrecarga de trabalho redimensionada pela pandemia lança luz ao que já era a realidade de 42% das mulheres entrevistadas, que indicaram não ter apoio externo ao núcleo familiar para o cuidado. Isso reforça a reivindicação histórica e permanente do movimento de mulheres por mais políticas públicas de cuidado, ainda muito insuficientes no Brasil, com distribuição desigual entre as regiões, e também entre áreas urbanas e rurais. Além da constitucionalização do Fundeb, aprovada em julho com muita pressão dos movimentos sociais de educação, a revogação da Emenda Constitucional 95 é um caminho importante para recuperar a capacidade do Estado em investir em políticas de cuidado.
O reconhecimento da vulnerabilidade e a atenção para as diferentes necessidades de cuidado significam, para as mulheres, a responsabilização por quem precisa de cuidado. Durante a pandemia, 50% das entrevistadas passaram a cuidar de alguém. As mulheres passaram a cuidar de pessoas que não são necessariamente lidas como “dependentes” para as atividades do cotidiano, e o cuidado que assumiram é marcado pela atenção (mesmo que seja uma ligação para saber como a pessoa está, monitorar se precisa de algo), além de fazer compras evitando que pessoas consideradas do grupo de risco se expusessem ao novo coronavírus.
A responsabilização pelo cuidado e a solidariedade como prática que apoia a reprodução em um contexto de generalização da precariedade move as mulheres individual e coletivamente, como pode ser observado nas ações organizadas por movimentos sociais, coletivos e organizações locais. Nas ações da Marcha Mundial das Mulheres durante a pandemia, a distribuição de alimentos, máscaras e produtos de higiene produzidos coletivamente cria e reforça processos de auto-organização das mulheres nos territórios, articulando solidariedade com a construção de autonomia, enfrentamento à violência e ações de denúncia ao projeto político do governo federal, que não cuida da vida e amplia desigualdades.
Muito se discute sobre os rumos do mundo “pós-pandemia”. Essa pesquisa ilumina dimensões da produção do viver que deveriam estar presentes, com centralidade, nos debates sobre os caminhos a seguir. Do contrário, a tão falada recuperação econômica mais uma vez se dará às custas de mais sobrecarga, exploração racista e precariedade, somada a uma renovada naturalização do ideal heteropatriarcal de família e à reprivatização do cuidado nas casas. Além disso, como tem sido reforçado pelo movimento de educação, o retorno ao funcionamento presencial de creches e escolas não pode ser feito colocando em risco a saúde de crianças, trabalhadoras e suas famílias. É preciso organizar transições que apontem para mais direitos, mais vida, igualdade e justiça.
A partir do cotidiano (da comida, da água, da saúde, da moradia e do direito à vida), a perspectiva da sustentabilidade da vida é capaz de informar quais deveriam ser as preocupações incontornáveis. Isso inclui o debate político sobre a produção e distribuição de alimentos saudáveis (reforma agrária, agroecologia, soberania alimentar), políticas que garantam a universalização efetiva do direito à água e ao saneamento básico (tornado facilmente privatizável em plena pandemia). A sustentabilidade da vida exige o fim da violência policial e do racismo que segue destruindo as vidas de crianças e jovens negros no Brasil, exige o direito à autodeterminação dos povos indígenas e quilombolas. Também subverte as prioridades da produção, politizando a decisão do que é necessário produzir e em quais condições (na relação com a natureza, com os trabalhadores e trabalhadoras). Colocar a sustentabilidade da vida no centro é uma estratégia feminista para transformar nossa sociedade em uma que reconheça a interdependência, valorize quem cuida, redistribua o cuidado, reorganizando a economia.
¹ Tica Moreno é socióloga, pesquisa sobre cuidados, compõe a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.