Mulheres rurais em meio à pandemia: desigualdades e práticas econômicas para a vida
Miriam Nobre¹
A pesquisa “Sem parar: a vida das mulheres durante a pandemia” se esforçou para garantir o levantamento das percepções de mulheres que vivem em áreas rurais². Ao final, entre as entrevistadas que integram a amostra analisada, 14,5% eram mulheres rurais. Entre elas, pouco mais de 60% eram negras, enquanto, no meio rural, elas representavam quase 68%, segundo dados do 4º trimestre de 2019 da PNAD processados pelo DIEESE/CONTAG.
Ainda segundo a PNAD, quase 63% das mulheres rurais estavam fora da força de trabalho, uma informação que nos provoca a reflexão sobre a invisibilidade do trabalho realizado pelas mulheres na agricultura, na criação de pequenos animais e na transformação de alimentos. Esse trabalho contribui para a reprodução não só da família nuclear, mas também de famílias estendidas, com partes delas vivendo na cidade, e para o apoio de vizinhas em situação de maior vulnerabilidade e para ações sociais organizadas por igrejas e entidades de assistência (Telles e outras, 2018).
Segundo o Censo Agropecuário 2017, 40% dos estabelecimentos tinham o autoconsumo como finalidade principal – proporção que chegava a quase 55% no caso de o estabelecimento ter uma mulher como principal responsável. Entre os estabelecimentos, 58% tinha renda proveniente de atividades externas superior às internas, o que chegava a quase 71% dos estabelecimentos com uma mulher como principal responsável. Ainda que esta proporção sugira a possibilidade da não contabilização de boa parte da produção realizada pelas mulheres, ela também aponta para o aumento do assalariamento, sobretudo de mulheres, e em atividades rurais não agrícolas. Em geral, a lógica das famílias camponesas é combinar diferentes fontes de renda e investimentos (estudo, cursos de qualificação profissional, maquinário…) para assegurar a viabilidade da unidade de produção familiar. Isso em um contexto de grande pressão para que se subordinem à lógica capitalista – ou seja, forneçam alimentos a baixo preço e força de trabalho a baixíssimo custo às grandes empresas agrícolas ou à construção civil ou entreguem suas terras a capitalistas para a monocultura ou como reserva de valor.
Observar esta forma de organização do trabalho no campo e sua integração à economia capitalista nos ajuda a entender como as mulheres rurais que estão cumprindo o isolamento social caracterizam sua relação com o trabalho neste momento. As entrevistadas rurais responderam em igual proporção (44%) que seu “trabalho não pode ser feito à distância, mas o salário segue mantido” e que estão “em casa sem trabalhar com prejuízo de renda”. As mulheres urbanas entrevistadas estão em outra situação. Entre elas, 57% seguem trabalhando em casa com manutenção de salário, seguido por 22% que afirmaram que sua situação se mantém porque já trabalham no domicílio de forma remunerada ou não.
Quanto às rurais, no primeiro caso, podem estar aquelas que têm como principal fonte de renda a produção agropecuária. Sendo mulheres que participam de movimentos sociais, pode ser que estejam integradas a redes de comercialização direta, as quais, durante a pandemia, têm aumentado seus volumes de comercialização. No segundo caso, podem estar aquelas que combinavam rendimentos provenientes do trabalho assalariado, reduzidos pela ampliação do desemprego, em especial entre trabalhadoras e trabalhadores informais, onde a maioria delas se encontra. Onde a SOF atua, na Barra do Turvo, mulheres e homens, em particular jovens, têm voltado para as casas de parentes durante a pandemia, diante do desemprego na cidade, e se envolvido na abertura de novas áreas de plantio, que no futuro trarão retornos em alimentos para autoconsumo e venda³.
Avaliamos que a abertura de novas roças é uma resposta daquelas que têm acesso à terra diante das incertezas econômicas e sociais da pandemia, bem como diante da fragilidade ou ausência de políticas públicas. Entre as entrevistadas rurais, 57% consideraram que “a pandemia do coronavírus e a situação de isolamento social colocaram a sustentação de sua casa em risco”, enquanto as urbanas são 36%. A perda da remuneração por integrantes da família afeta o arranjo de rendimentos que mantém sua reprodução. As inseguranças se materializam em dificuldades para pagar contas básicas, questão apontada por 54% das entrevistadas, mas com maior peso entre as rurais (67% delas). Entre as urbanas esta é uma preocupação para metade delas, seguida pela dificuldade em pagar o aluguel (34%), o que não é relevante entre as mulheres rurais entrevistadas. Isto indica que elas provavelmente têm acesso à terra onde constroem sua moradia.
A segunda preocupação apontada pelas mulheres rurais (24% delas) é o acesso a alimentos, o que aponta para o aumento do preço dos alimentos nas pequenas cidades devido a quebras nas cadeias usuais de distribuição e abastecimento e a reação acima comentada de aumento no plantio. Esta percepção é reforçada pela resposta de metade das rurais entrevistadas de que os gastos na manutenção da casa aumentaram, enquanto as urbanas são 43%.
Condições para se prevenir
As condições objetivas para se prevenir do coronavírus também apresentam diferenças segundo o local de moradia. Enquanto a quase totalidade (95%) das mulheres urbanas entrevistadas afirmaram não ter dificuldades para ter acesso aos meios de prevenção ao vírus, esta proporção caía para 79% das mulheres rurais. Entre as respostas, para as mulheres urbanas, o maior peso estava em não ter acesso regular à água, e, para as rurais, ainda que em menor diferença, não ter acesso a informações sobre a prevenção.
Em 2015, no Brasil, 93,5% dos domicílios urbanos contavam com abastecimento adequado de água, enquanto, nos domicílios rurais, esta proporção caía para 75,9%. No entanto, nos anos recentes, têm sido mais frequentes os cortes de fornecimento de água nas periferias urbanas devido à falta de manutenção dos sistemas de distribuição e às secas que causam redução do nível dos reservatórios para abastecimento de água. Ao mesmo tempo, ampliou-se na região Nordeste a implantação de cisternas para coleta de água para uso doméstico em áreas rurais. Ainda que anos consecutivos de pouca chuva possam comprometer a coleta, a ação dos movimentos sociais organizados na ASA – Articulação do Semiárido, em conjunto com o Programa 1 milhão de cisternas do governo federal, melhorou o acesso e pode ter contemplado a mulheres rurais que responderam a entrevista. Em outras regiões, as mulheres rurais podem ter acesso à água por meio de poço ou nascente. As mulheres rurais também estão em melhores condições de acesso a produtos de higiene, possivelmente porque muitas delas mantém a prática de fazer seu próprio sabão, usando gordura animal ou vegetal e soda.
O menor acesso à informação pelas mulheres rurais (ainda que em pequena diferença) pode estar relacionado a seu menor acesso à internet. Entre aquelas mulheres que não têm internet em casa, 65% são rurais e 35% urbanas. Entre aquelas que têm, a diferença diminui se a forma de acesso é pelo pacote de dados do telefone. A diferença de acesso já foi apontada pela PNAD contínua de 2017 sobre Tecnologias de Informação e Comunicação. Nos domicílios urbanos, 80% utilizava internet, enquanto a proporção se reduzia a 41% nos domicílios rurais. Nos últimos anos, ampliou-se o acesso, sobretudo, por meio dos telefones. Mas, em geral, o sinal de telefonia é precário, o que demanda que as mulheres rurais tenham que dirigir-se a um lugar onde o sinal funciona. E os pacotes de dados são limitados, sendo inclusive essa uma das contas comprometidas pelas variações de renda durante a pandemia. As mulheres utilizam o WhatsApp, e seus grupos são uma das poucas formas de acesso à informação e também de manutenção das articulações que funcionam como uma forma de escuta e acolhimento ou de organização da comercialização direta. O coletivo Intervozes e a CONAQ realizaram um levantamento junto com quilombolas de onze estados que destacou a importância da internet para o acesso a informação. Considerando a precariedade de acesso, articularam uma proposta de emenda que sugere o uso do Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações (SGDC) ou outra tecnologia para garantir a conexão de comunidades indígenas, quilombolas e distritos não sede de municípios com recursos do Fundo de Universalização dos Serviços de Telefonia.
As mulheres rurais da Barra do Turvo apontaram a televisão como sua principal forma de acesso a informações sobre prevenção. Cabe, então, analisar como as informações estão aí sendo transmitidas e como favorecem (ou não) uma construção de sentido pelas mulheres. Percebemos que a interpretação das informações está atravessada por sentidos religiosos e de estigma em relação à doença e às pessoas que a contraem, o que não favorece a adoção de práticas de prevenção.
Trabalho doméstico e de cuidados
Entre as entrevistadas, quase 64% consideraram que a distribuição do trabalho doméstico entre as pessoas que convivem permaneceu a mesma, com pouca diferença entre rurais (68% delas) e urbanas (63% delas). Ainda que não contemos com a informação de como tal distribuição acontecia previamente, é possível supor que as mulheres rurais vivenciem situações de maior desigualdade. A combinação de atividades no espaço da casa e do quintal, a infraestrutura das casas, as formas de acesso à água e à energia demandam mais trabalho e uma organização contínua do tempo. Segundo a PNAD 2015, as mulheres urbanas dedicavam 23 horas aos afazeres domésticos, enquanto as rurais dedicavam 25,2. No entanto, pesquisadoras feministas apontam a plausível subestimação destes dados (Moraes e outras, 2020). Na experiência de atuação da SOF, a organização do trabalho doméstico de forma mais igualitária é resultado de um processo político coletivo das mulheres e base para que este processo e sua consciência se fortaleçam e ampliem. A percepção de que o contexto de pandemia agravaria uma organização do trabalho doméstico já de bastante sobrecarga para as mulheres está na base da “Campanha pela divisão justa do trabalho doméstico”, anteriormente realizada por organizações agroecológicas do Nordeste e agora assumida pela Articulação Nacional de Agroecologia em âmbito nacional. Também é tratada pela “Campanha Mulheres sem terra contra os vírus e as violências”, das mulheres do MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Ambas articulam as injustiças vivenciadas pelas mulheres no âmbito do trabalho doméstico e de cuidados e de sua integridade física e emocional. Entre as mulheres rurais entrevistadas, quase 12% afirmavam ter sofrido alguma forma de violência no período de isolamento, proporção que se reduzia a 8,4% entre as mulheres urbanas.
O levantamento buscou demonstrar que tipos de atividades do trabalho doméstico e de cuidados se alteraram no período da pandemia. O “auxílio nos cuidados pessoais: alimentar, vestir, pentear, dar remédio, dar banho, colocar para dormir”, permaneceu igual ou aumentou para 1/3 das entrevistadas, sem diferenças entre rurais e urbanas. Entre aquelas que consideraram que aumentou muito (quase ¼ do total) destacavam-se as urbanas (27% delas, diante de 10% das rurais). Uma hipótese é de que as mulheres rurais não separam o cuidado das crianças como uma demanda de trabalho em si, pois o cuidado se dá como uma disponibilidade permanente que se efetiva de forma simultânea a outras atividades. Exemplo disso é a resposta de Jane Santos, quilombola da Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo/SP (RAMA) à pergunta de uma companheira sobre o que elas estavam fazendo:
“Hoje eu tô aqui de babá, cuidando das minhas crianças e mais a menina da minha vizinha e atendendo o telefone para ver se o [Instituto] Chão me responde pras ofertas, que até agora não tem pedido deles, e fazendo o almoço. Meu marido tá pra roça e eu tô em casa, lavando roupa e cuidando das crianças.”
O auxílio em atividades educacionais permaneceu igual para quase 31% das entrevistadas com responsabilidade de cuidado por outras pessoas e aumentou para quase 33%, sem diferença significativa entre rurais e urbanas. Para 24% das entrevistadas, esse trabalho aumentou muito, com peso maior entre as urbanas (29% delas) do que entre as rurais (19%). Esta percepção diferente possivelmente se relaciona com a forma como o ensino a distância tem sido organizado em municípios pequenos e maiores e em escolas públicas e particulares. As crianças rurais provavelmente estudam em escolas públicas. Ainda que muitas escolas rurais tenham sido fechadas nos últimos anos, no atual momento, na Barra do Turvo, as professoras estão levando a lição às crianças em suas casas, ocasião em que podem realizar algum acompanhamento.
Por fim, destaca-se entre as rurais aquelas que passaram a apoiar ou responsabilizar-se pelo cuidado de alguém. Entre o conjunto de entrevistadas, 49,75% responderam que sim. Entre as mulheres urbanas, 48% ampliaram sua rede de cuidados, proporção que cresce para 62% entre as rurais. No grupo de WhatsApp da RAMA, as agricultoras um dia amanheceram com o “bom dia” de Izaldite Dias:
“Como é que tá todo mundo? Que saudades, tá todo mundo se cuidando? Cada coordenadora tá dando uma bizoiada nas companheiras? Uma cuidando da outra? Como é que tá? A gente precisa cuidar uma da outra, mesmo de longe, é muito importante isto.”
No campo, a rede de relações interpessoais se mantém e se expande para a cidade. Podem ser relações de famílias extensas, de compadrio ou entre as e os integrantes do bairro rural, do quilombo ou o do assentamento, umas sobrepondo-se a outras. O aumento das responsabilidades pode ter se dado pela ausência do Estado, que não responde a novas emergências e se esforça em desmantelar redes de apoio existentes. Esse é o caso da alimentação escolar, suspensa junto com as aulas presenciais, ou de equipes de saúde da família que suspenderam atendimentos em postos avançados nas áreas rurais.
Para seguir adiante
A organização das informações por local de moradia (rural e urbano) nos ajuda não só a entender dimensões da vida das mulheres rurais e das desigualdades entre rurais e urbanas. Informações desagregadas desta forma desapareceram das instituições públicas no período pós-golpe. Por exemplo, a distribuição desigual dos cuidados entre mulheres e homens se soma a uma distribuição desigual dos cuidados entre mulheres. As mulheres rurais funcionam como uma reserva de cuidados acionada pelas famílias. Quando os parentes idosos necessitam de mais cuidados, muitas vezes são enviados para viver com as parentes que vivem no campo. Quando as jovens vão estudar ou buscar trabalho na cidade, se hospedam em casas de parentes e passam a realizar os trabalhos domésticos e de cuidados, muitas vezes sozinhas. Quando a cadeia internacional de cuidados se viu afetada pela pandemia no Estado Espanhol, as mulheres rurais voltaram a ser mobilizadas.
No entanto, não são apenas as desigualdades que se desvelam, mas as contribuições econômicas das mulheres rurais em sua forma própria de organizar o trabalho e o tempo, mobilizando conhecimentos e energia. A diversidade de alimentos que elas produzem reproduz a vida de inúmeras pessoas, animais e plantas. As redes comunitárias nutridas pelas mulheres rurais se mantêm e são mais acionadas nos momentos de crise, como o que vivemos. Não por acaso, no grupo de WhatsApp da RAMA, foi durante o período das festas juninas que se intensificaram as trocas de mensagens de saudades e de vontade de conversar, partilhando um quentão em volta da fogueira.
A combinação entre pesquisas quantitativas e qualitativas nos ajuda a enxergar, em sobreposições, diferentes cores e nuances, como há na vida. E são estas práticas econômicas mais próximas da vida que nos apontam caminhos de saída.
¹ Miriam Nobre é integrante da equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista, da REF – Rede Economia e Feminismo e do GT de mulheres da ANA – Articulação Nacional de Agroecologia.
² Agradecemos às companheiras da Secretaria de Mulheres Trabalhadoras Rurais da CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares e do Centro Feminista 8 de Março do Rio Grande do Norte pela difusão do questionário desta pesquisa.
³ As referências sobre a realidade na Barra do Turvo, São Paulo, são provenientes da observação direta da equipe da SOF do grupo de WhatsApp da RAMA – Rede Agroecológica de Mulheres Agricultoras da Barra do Turvo e de análises preliminares de pesquisa em curso realizada por Isabelle Hillenkamp e Natália Lobo (IRD – Institut de Recherche pour le Développement – Instituto de Pesquisa para o Desenvolvimento França).
Referências bibliográficas
Moraes, Lorena; Pontes, Nicole; Sieber, Shana; Funari, Juliana; Nascimento, Nathalia; Marques, Patrícia. Trabalho e uso do tempo: a construção de metodologias para compreender a rotina de mulheres rurais. In Melo, Hildete Pereira de; Moraes, Lorena Lima de (Orgs.). A arte de tecer o tempo: perspectivas feministas. Campinas: Pontes Editores, 2020. p. 169-204.
Telles, Liliam; Jalil, Laeticia; Cardoso, Elisabeth; Alvarenga Camila. Cadernetas Agroecológicas e a contribuição econômica das agricultoras agroecológicas no Brasil. In Zuluaga, Gloria, Catacora-Vargas, Georgina, Siliprandi, Emma. Agroecología en femenino. Reflexiones a partir de nuestras experiencias. 2018 pp 141-158